Ao trazer um idealista em luta contra a corrupção, esse aclamado clássico do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) permite entrever o que há por trás dos desmantelos no mundo político.
Em seu combate à "hipocrisia institucionalizada e suas consequentes crueldades", Ibsen expõe com sutileza e precisão, as motivações em se manter o status quo e o descaso com as normas sociais corruptas.
A ação que se desenrola numa pequena cidade, cuja maior fonte de renda é o turismo de seu balneário, tem como personagens principais, um médico idealista, Dr. Stockmann, seu irmão Peter, que é o prefeito da cidade, o editor e o impressor do jornal local, "A Voz do Povo".
Em visita ao irmão médico, o prefeito, orgulhoso por ser um "funcionário superior do Estado", exulta o espírito de tolerância, que é o autêntico espírito de cidadania.
Enquanto aguarda comprovação da existência de substâncias nocivas nas águas da cidade, o médico diz que talvez as coisas não estejam tão normais como se imagina.
Desconfiado e, já se precavendo, o prefeito exige que tudo se resolva segundo os regulamentos e passe pela autoridade legalmente constituída, pois a tentação de fazer as coisas por conta própria numa sociedade bem organizada é inadmissível: "As iniciativas particulares devem se submeter, custe o que custar, ao interesse geral, ou melhor, às autoridades encarregadas de zelar pelo bem geral.". E se vai.
Mais tarde, ao encontrar com o capitão do navio na casa do médico, o editor do jornal pergunta se o capitão se interessa pelos assuntos públicos, ele responde que, para falar a verdade, não entende dessas coisas.
O editor então, chama a atenção do capitão para o fato de que, mesmo assim, deve-se votar, é obrigatório. E o capitão lhe pergunta: "Mesmo os que não entendem nada?".
O editor fica espantado: "A sociedade é como um navio. Todos devem estar atentos a sua rota".
Após ler a carta das autoridades sanitárias, o médico confirma suas suspeitas: "O Balneário todo nada mais é do um sepulcro envenenado. Perigosíssimo para a saúde pública! E esse maldito lixo envenena as águas e vai até a praia...".
É grave! Há presença de substâncias orgânicas, está cheia de detritos de animais em decomposição.
Sua mulher, Catarina, chama a atenção para a gravidade da descoberta, e ele a tranquiliza dizendo que, cônscio do rebuliço que uma notícia dessas causaria, não é louco de divulgar sem ter absoluta certeza, pois isso implicará em mudar toda a canalização.
O médico também ouve de seu sogro que é preciso ter o apoio da imprensa, para que essas coisas deem certo.
Novamente com o editor do jornal, este o alerta que, como médico e cientista, ele só está vendo a questão da contaminação das águas sob o ponto de vista médico e científico, mas que haverá outras implicações.
O jornalista profere que a verdadeira contaminação que está apodrecendo a cidade vem mesmo é de outro lugar: "São esses ricos, que ostentam nomes tradicionais, os mesmos que nos governam". E salienta que: "Todos os negócios da cidade passaram, pouco a pouco, para as mãos de um bando de políticos, altos funcionários do governo".
Confiante, o médico acredita que ainda se pode remediar o mal e que, fácil ou não, isso tem que ser feito, sobretudo se a imprensa se ocupar do caso, e o editor o apoia: "Quando tomei a direção da Voz do Povo foi com a ideia de acabar com esses velhos aproveitadores que dominam o poder!".
Mas o Dr. Stockmann lembra que isso quase o faliu, e ele concordou: "Tivemos que nos deixar calar (...). Mas um jornalista com tendências democráticas, como eu, não pode deixar escapar esta grande oportunidade. É preciso acabar com a velha lenda da infalibilidade dos homens que nos dirigem".
O editor reitera que um jornalista não pode deixar de trabalhar pela emancipação da massa dos humildes, dos oprimidos e, aparentando convicção, expõe: "Sou de origem humilde. Isso me permitiu compreender claramente que as camadas populares, as chamadas classes inferiores, devem participar do governo, dirigindo, elas também, os negócios públicos. Nada melhor que isso para desenvolver o sentimento de cidadania e da própria dignidade...".
O impressor também oferece apoio, dizendo-se legítimo representante da classe média, dos cidadãos comuns: "Unidos, formamos uma maioria compacta. Os que estão no poder não veem com bons olhos os projetos que beneficiam outras categorias sociais, os gastos que só beneficiarão as pessoas sem trazer lucro imediato a eles. Eis porque, a meu ver, deveríamos fazer uma manifestação".
Sugere uma coisa moderada: "(...) num tom suave para não ofender as autoridades. Nessas condições, não nos poderão censurar, não é verdade?".
Cauteloso, reitera: "Nada de ataques à autoridade. Nada de oposição àqueles de quem dependemos. Mas não há nada de ofensivo no fato de um cidadão exprimir livremente algumas ideias sensatas".
Chama a atenção para o fato de que as autoridades se movem com certa lentidão e insiste em que o médico aja com prudência porque do contrário não conseguirá nada e prossegue animado: "Não lhe parece que é tempo de arejar isto aqui, de sacudir todo esse torpor, esta covardia, esta letargia em que está mergulhada a cidade?".
Atenta ainda que, muro sólido, a classe média é a maioria: "Sempre nadando entre duas águas, pequenos burgueses medíocres enleados numa rede de compromissos que os impede de dar um único passo decisivo.".
Exultante, o médico revela ao editor que o impressor do jornal lhe parece ter boas intenções, e o editor responde que, para ele, há coisas mais importantes do que ser um homem bem intencionado: ser um homem resoluto e senhor de si mesmo. Quanto a isso, o Dr. Stockmann concorda plenamente.
Animado em publicar o alerta que denuncia sobre a contaminação das águas, o editor diz ver nisso um estímulo aos homens de boa vontade: "Precisamos extirpar desta cidade o culto da autoridade. É preciso que o erro imperdoável cometido nesse assunto das águas seja um facho de luz para todos os eleitores".
Depois que ele se vai, entusiasmado por pensar que tem a imprensa liberal ao seu lado, o médico conversa com a mulher: "Tenho por trás de mim a maioria dos concidadãos, a opinião pública!".
Chama então seu irmão, Peter, o prefeito e o coloca a par do relatório sobre a contaminação. Mas este o repreende: "Você já imaginou o que poderiam custar essas mudanças? (...) Nada mais restaria a fazer senão fechar este estabelecimento que nos custou tão caro. E desse modo você terá arruinado a sua cidade".
Diz que o relatório não o convenceu: “O
sistema atual das canalizações do balneário é um fato consumado e deve,
portanto, ser aceito como tal. Isso não quer dizer que a direção se recuse a
examinar as suas ponderações no seu devido tempo, visando aperfeiçoar o
sistema, desde que isto não importe em gastos
acima de suas forças”.
Inconformado, o doutor pergunta ao prefeito se este o julga capaz de se associar a uma farsa dessa natureza, uma mentira, uma fraude, um verdadeiro crime contra o povo, contra a sociedade.
Diz que ele sabe que é essa a verdade, mas não quer aceitar. O prefeito não recua, salienta que o médico tem gênio inquieto, rebelde, até subversivo: "Qualquer coisa que passa pela sua cabeça você transforma em artigo de jornal, ou até mesmo em panfleto, se for o caso. É o interesse público que está em jogo".
Mas o idealista está convicto: "Não é dever de todo bom cidadão, logo que lhe vem as ideias novas, comunicá-las ao povo?", ao que o prefeito retruca: "Ora! O povo não precisa de ideias novas. O povo precisa é das boas e velhas ideias!", fala ainda que o irmão não calcula o mal que causa, sempre se queixando das autoridades, do governo, prevenindo-o de que será inflexível.
Ao ser informado que a imprensa já sabe do relatório que confirma a contaminação das águas do balneário, sugere ao irmão que faça um desmentido, pois esse tipo de coisa só interessa às autoridades, que diga que os dirigentes, em quem confia cegamente, já estão fazendo todo o possível para que os vestígios da contaminação desapareçam.
Mas o Dr. Stockmann aponta que não vê vontade política em solucionar os problemas e o prefeito não se contém: "Eu sou seu chefe e lhe proíbo. E quando proíbo uma coisa, você nada mais tem a fazer do que obedecer", avisando-o de que está entrando num jogo realmente perigoso.
O médico afirma que se preocupa com o bem-estar da população da cidade e que denunciará todos os erros que os políticos cometem no comércio de imundices e veneno em que vivem, mas o prefeito ressalta que isso é loucura e o homem que emite tão odiosas insinuações contra sua própria cidade não pode ser senão um inimigo da comunidade.
Quando o prefeito se vai, o médico confessa à mulher que devia ter reagido aos desmandos dessa gente há muito tempo, e Catarina o lembra de que, sendo prefeito, seu irmão tem poder na cidade, contra isso não há o que fazer: "Sim, mas eu tenho a verdade ao meu lado", ao que ela pondera: "Oh! A verdade... De que serve ela se você não tem o poder?".
Incrédulo, pergunta à esposa se num Estado livre não adianta nada ter a verdade ao seu lado, insistindo que tem a imprensa liberal e a maioria dos cidadãos: "Isto sim é que é poder, ou então não entendo mais nada". Está decidido a combater pela justiça e pela verdade, mesmo que o prefeito o tenha declarado "inimigo do povo".
Falar é fácil, diz a sua mulher, e a família para sustentar? Ele então pergunta se ela acha que se ele fosse bastante covarde para cair de joelhos aos pés dos governantes e de sua corja, poderia ter um momento de felicidade na vida.
Catarina o lembra das privações que já passaram, que podem perder o relativo conforto que hoje desfrutam e de que há as crianças para educar. A angústia o assalta: "Eis a situação a que esses burocratas podem reduzir um homem de bem. Não é horrível, Catarina?".
A esposa diz que sabe que há muita injustiça no mundo, mas que é preciso ceder. No entanto, a verve de nosso herói não cogita que se curve: "Não, ainda que o mundo desabasse, eu não me curvaria a esses canalhas".
O manifestante sentencia que quer ter o direito de olhar seus filhos de frente e de cabeça erguida quando eles forem homens.
São Paulo, 20 de junho de 2013 - Praça do Ciclista - Av. Paulista
São Paulo, 17 de junho de 2013 - Largo da Batata, SP