“(...) A voz do sangue (como denominá-lo de
outro modo?) fez-se ouvir de imediato e
minha alegria não teve limites”. Friedrich Nietzsche, sobre essa obra.
A máxima aristotélica de que só
pratica o mal aquele que desconhece o bem encerrava uma explicação plausível ao
desmantelo e estupidez do mundo.
Mas, nessa que é, seguramente,
uma de suas magistrais obras (“Memórias do Subsolo”, de 1864), o russo
Fiódor Dostoiévski (1821-1881) filosofa com propriedade sobre os insondáveis
do subconsciente e nos traz uma óbvia – e ao mesmo tempo
chocante – revelação sobre a psique.
Nessas acachapantes linhas, somos
provocados: “(...) quem foi o primeiro a declarar, a proclamar que o homem
comete ignomínias [ações altamente desonrosas, infâmias] unicamente por
desconhecer os seus reais interesses, e que bastaria instruí-lo, abrir-lhe os
olhos (...) para que (...) se tornasse, no mesmo instante, bondoso e nobre,
porque, sendo instruído e compreendendo as suas reais vantagens, veria no bem o
seu próprio interesse, e (...) passaria a praticar o bem?”.
Alicerçados no incontestável poder da razão, do raciocínio lógico
(“dois e dois são quatro” e não há o que se discutir), como entender que algumas
pessoas possam sentir prazer em perseguir o grotesco, a humilhação e até
orgulharem-se de vilezas e desonras?
Cáustico, irônico, paradoxal, logo
no início, o personagem do subsolo afirma ser um homem doente, mau,
desagradável e que, além de ser o primeiro a reconhecer isso, diz, convicto, que não
querer se curar só prejudicará a si mesmo e a mais ninguém.
Desalmado, confidencia o prazer
em prejudicar, propositalmente, os humildes (“É hábito meu ser assim.”),
consciente de que “(...) apenas assustava passarinhos em vão e me divertia com
isso”. Afirma ainda, que não se vive além dos quarenta anos, pois à partir daí já é
uma vida “indecente, vulgar, imoral!”, aludindo ao fato de que aos quarenta,
conformamo-nos, já não vivemos uma “vida viva”.
Declarando-se detentor de um “terrível
amor-próprio” confessa ser desconfiado, que se ofende facilmente, não fita
as pessoas nos olhos e se põe a explicar como é que acalenta um estranho prazer
– “sutil, às vezes inapreensível à consciência” – na própria degradação.
Presume não estar só, pois milhões
de fatos, diz esse homem do subsolo, testemunham que homens, com conhecimento de causa, isto é,
compreendendo plenamente as suas reais vantagens, as relegam e, teimosos, se lançam
em busca do risco, ao acaso, com teimosia, a seu gosto, procurando quase nas
trevas esse caminho árduo, absurdo.
Para ele, essa teimosia, essa ação
a seu gosto lhe era mais agradável que qualquer vantagem, que na verdade
não há como determinar com absoluta precisão em que consiste a vantagem humana,
pois essa pode consistir simplesmente em desejarmos o prejuízo, a degradação e
não aquilo que a unanimidade tem como mais salutar.
Indaga-se: “Não existirão algumas
pessoas que não apenas não se enquadraram, mas nem podem enquadrar-se em
qualquer classificação?”.
Diz que se levantássemos um
cadastro das vantagens humanas, calculando a média a partir de cifras
estatísticas e das fórmulas científicas e econômicas, é provável que
concluíssemos que vantajoso é o bem-estar, a riqueza, a liberdade, a
tranquilidade etc., e que negando essas vantagens o indivíduo poderia ser
considerado um demente.
A surpreendente ruína, aponta, é
que “(...) todos esses estatísticos, mestres de sabedoria e amantes da
humanidade, ao computar as vantagens humanas, deixam de mencionar uma
complicada que (...) não cabe em nenhuma classificação e não se enquadra em
nenhuma lista!”.
Quantas vezes não testemunhamos
alguém discorrer que agirá assim ou assado, porque usando o raciocínio lógico, ponderou
e chegou a tal conclusão, até se dá ao trabalho de censurar atitude inversa nos
outros, considerando-os estúpidos e blá-blá-blá, mas que, inexplicavelmente “devido a algo interior, mais forte que
todos os seus interesses”, contra todas as leis da razão, contra tudo e contra todos, até
contra sua própria vantagem, faz exatamente o oposto do que apregoava?
Aproximando-se de um dos pontos
nevrálgicos, o autor inquire: “Não existirá, de fato (...) algo que seja a
quase todos mais caro que as maiores vantagens [uma vantagem omitida], mais
importante e preciosa que todas as demais e pela qual o homem, se necessário,
esteja pronto a ir contra todas as leis, isto é, contra a razão, a honra, a
tranquilidade, o bem-estar, numa palavra, contra todas essas coisas belas e
úteis, só para atingir aquela vantagem primeira, a mais preciosa, e que lhe é
mais cara que tudo?”.
Desafiando-nos, roga que olhemos
a nossa volta: “o sangue jorra em torrentes (...) embora o homem já tenha
aprendido por vezes a ver tudo com mais clareza do que na época bárbara, ainda
está longe de ter-se acostumado a agir do modo que lhe é indicado pela razão e
pelas ciências (...)”. Infelizmente, os horrores das guerras assombram,
assombraram e... Assombrarão.
Esmiuçando o subconsciente do mais
racional dos animais, faz pilhéria: “E tudo isso devido a mais fútil das
causas, à qual, parece, quase nem valeria a pena referir-se: tudo precisamente
porque o homem, seja ele quem for, sempre e em toda parte gostou de agir a seu
bel-prazer e nunca segundo lhe ordenam a razão e o interesse (...)”.
Egoístas,
extravagantes e teimosos, dificilmente abriríamos mão de “Uma vontade que seja nossa,
livre, um capricho nosso, ainda que dos mais absurdos, nossa própria
imaginação, mesmo quando excitada até a loucura [mentir, trair, invejar,
amaldiçoar, odiar, perverter, se humilhar, acovardar-se, acomodar-se... Bem, a
lista é vasta!] – tudo isso constitui aquela vantagem das vantagens que deixei
de citar, que não se enquadra em nenhuma classificação, e devido à qual todos
os sistemas e teorias se desmancham continuamente, com todos os diabos!”.
Cáustico, desdenha: “E de onde
concluíram todos esses sabichões que o homem precisa de não sei que vontade
normal, virtuosa? Como foi que imaginaram que ele, obrigatoriamente, precisa de
uma vontade sensata, vantajosa?”. Ora, o homem é estúpido, de uma estupidez
fenomenal –, sentencia.
Para o homem do subsolo, uma
vontade ajustada com a razão nos levaria a privilegiar a lógica e isso
impediria de desejarmos algo sem sentido: “(...) o que é um homem sem desejos,
sem vontades nem caprichos? (...) que prazer se pode ter em desejar segundo uma
tabela?” – provoca.
Para muitos, como prescindir do
abuso de “senhores”, da “harmoniosa” instabilidade, de uma angústia doentia ou
de certa afinidade com o caos? Ser feliz pode não ser nada fácil.
Não podendo ir, conscientemente,
contra a razão e desejarmos o que é nocivo a nós próprios e viver assim de
acordo com a nossa estúpida vontade: “(...) o que sobrará de livre em mim,
sobretudo se sou um sábio [gracejo do homem do subsolo] e terminei um curso de
ciências em alguma parte?”.
De forma lapidar, decreta: “O
homem precisa unicamente de uma vontade independente, custe o que custar essa
independência e leve aonde levar. Bem, o
diabo sabe o que é essa vontade...”.
Reiterando nosso convite para hoje à noite: