“A convenção é a medida comum e uniforme do banalizado”. Paul
Diel
“O homem (...) superará as influências se viver segundo a
justiça, mas, se seguir as suas tendências cegas, se descer à classe dos brutos
e dos animais, vivendo com eles, o rei da natureza já não comanda, é comandado
pela natureza”. Tycho-Brahé
O desequilíbrio entre os tão
sublimes anseios espirituais e os desejos materiais, comumente favoráveis a
esse último, resvala em rebaixamento não apenas do corpo, mas também da alma,
não somente do indivíduo, mas de toda a sociedade.
Herdamos a responsabilidade de
harmonizar essa relação através do bom uso da ratio, pois como afirma o renomado pensador francês, Paul Diel: “No
ser consciente, o meio de satisfazer o amor exaltado pela terra é o intelecto
(...)”.
Fruto de uma perversidade
grotesca dos indivíduos, a banalização dos – cada vez mais irrefreáveis – desejos
materiais, aceita e incorporada por cada indivíduo culmina num consenso social que,
sorrateiramente, corrói toda base cultural da vida dos homens, que é a própria
sociedade.
Sabemos que os relatos
mitológicos comportam profunda compreensão da psicologia humana, permitindo-nos
a atentar às risíveis deformações psíquicas que, tornadas “comuns” devido à
frequência, podem ser erroneamente tomadas como condições “normais” (e até
mesmo desejáveis) da vida.
Dentre os mitos gregos a
representar essa deformação psíquica, exemplar é o do famigerado rei Midas que,
simbolizando dois aspectos da ‘banalização convencional’, o lucro e a luxúria,
incorre na depravação de duas pulsões corporais: material e sexual.
Atentemos aos episódios das
desventuras de Midas, soberano da Frígia (região da atual Turquia), por onde
corre o rio Pactolo, cujo povo usava um gorro vermelho, o famoso “capuz frígio”
e, segundo Diel “tinha fama proverbial junto aos gregos por sua libertinagem e
devassidão”.
Certa vez, num dos seus
costumeiros passeios pela região, o orgiástico e caótico deus Dioniso (Bacco),
sempre acompanhado de Sátiros, constatou que seu fiel companheiro, o velhinho
manguaceiro, Sileno, perdera-se do grupo.
Atraído por ânforas de vinho propositalmente
disponibilizadas pelo simpatizante Midas, Sileno foi encontrado bêbado por
alguns camponeses e levado à presença do rei.
Instruído nos “Mistérios órficos”
que alertam a não menosprezar nenhuma divindade, Midas o recebeu da melhor
forma possível, banqueteando-o por dias e dias. Depois disso, com todo zelo, levou
Sileno até o deus do vinho.
Feliz da vida por ter
reencontrado seu querido Sileno, são e salvo, Dioniso decide, por gratidão,
conceder a Midas o que ele desejasse. Rico, mas cobiçando ainda mais riquezas
(meio de acesso a todos os prazeres), tomado por uma ansiedade nervosa, que é a
exaltação imaginativa dos desejos, cego pela ganância, Midas nem pensa: “Quero
que tudo o que eu toque se transforme em ouro!”.
Espantado, entre o lamento e o
riso por tão desastrosa escolha, Dioniso o atende prontamente. E qual não foi o
assombro do rei ao comprovar, maravilhado, que tudo, absolutamente tudo o que
tocava, transformava-se em ouro puro.
Passada a euforia de suas pueris
e deslumbradas brincadeiras no palácio – tocou incansavelmente, tornando ouro
tudo com o que se deparava (paredes, colunas, portas, piso, mobília, adornos, flores, animais e até
pedras), viu o anoitecer aproximar-se.
Faminto, constatou que até mesmo
suas bebidas e alimentos transmutavam-se, instantaneamente, no mais nobre
metal.
Por temor a esse extraordinário
poder, todos os serviçais o evitavam, pois, sem querer, até mesmo à própria filha, ao
abraçar, petrificou em ouro.
Triste e solitário, Midas então
compreende que devido à perda de uma visão mais sublime da vida, substituída
por uma euforia material, sua felicidade esvaiu-se.
Pressentindo seu fim iminente, o
rei “viu-se pobre no meio de toda aquela abundância enganadora que o condenava
a morrer de inanição”.
Aterrorizado, em comovente
arrependimento, aos prantos, o rei ajoelha-se e roga a Dioniso que, desfazendo
o encantamento, o livre do “dom fatal que de bom só tinha a aparência”.
Penalizado, Dioniso o orienta a
banhar-se no rio Pactolo e o funesto dom desaparece por completo. Diz-se que é
por isso que, até hoje há pepitas de ouro no leito desse rio.
Tolo demais, pois não cultivava o
intelecto que o tornaria apto a disciplinar a efervescência dos desejos
imaginativamente exaltados, ainda restava em Midas muito do medíocre concupiscente,
do insensível ao sublime que sempre fora.
Por isso, mais uma vez, ele não
tarda a errar em seu julgamento, na escolha entre a vida sublime e a vida
perversa.
Juntamente com as Musas, Midas
foi designado a ser um dos juízes de um concurso musical entre a lira de Apolo
(deus da harmonia) e a flauta de Pã (célebre fauno que acompanha Dioniso).
Após as apresentações,
contrariando o voto dos demais, o ouvido bárbaro de Midas dá a vitória a Pã,
elegendo a música eroticamente grotesca em detrimento da sublime.
Furioso pelo ultraje, Apolo
decide punir tal injustiça ornando o soberano com orelhas de asno (burro),
dizendo que, ao privilegiar a música de Pã, aquelas estúpidas orelhas não
podiam ser humanas.
Envergonhado, morrendo de medo
que os outros soubessem, Midas esconde suas orelhas de asno, símbolo da sua
ignorância.
É desse mito que advém a
associação desse inocente animal – o burro – ao que não privilegia o intelecto.
Mas tal insígnia cabe mais apropriadamente a Midas.
Incapaz de assumir suas próprias
faltas, ao dissimular a estigmatização vergonhosa de seu vício escondendo-as
bem sob um gorro, Midas crê estar sendo esperto.
Forçando uma inversão do banal
em ideal, o rei pensou estar disfarçando, mas, o capuz lhe serviu e,
denunciando ainda mais, ‘assinou’ toda sua estupidez. Por esse ato, a irônica
indagação se a carapuça ‘serve’ se tornou usual.
Paul Diel afirma que “O intelecto
que perde sua lucidez não é senão um pensamento carregado de afetividade
primitiva, cego e extremamente permeável a todos os erros correntes”. Alerta
ainda que isso não impede que o ‘banalizado convencional’ mostre-se astucioso
na perseguição de seus objetivos, geralmente inconfessáveis.
Passado um tempo, cabelos e
barbas do rei Midas cresceram muito. Não podendo mais adiar o corte, ele mandou
chamar o barbeiro e, na calada da noite, trancafiou-se com ele em seus
aposentos, ameaçando-o que se ele ousasse falar com quem quer que fosse sobre o
que iria ver, estaria assinando sua própria condenação. Condenação à morte!
Disfarçando o espanto com as
surpreendentes orelhas do rei e tentando aparentar indiferença, o barbeiro
profere: “Não sei do que Vossa Majestade está falando, pois eu nada vi nesta
sala que já não tivesse visto antes”. O soberano tranquilizou-se, certo de que
seu segredo estava assegurado.
Angustiado e triste, o pobre
barbeiro ansiava desesperadamente por dividir o peso insuportável desse
segredo, mas a simples lembrança do luzir da espada do carrasco o continha.
Refém de terrível sofrimento,
pensou ter uma ideia brilhante: afastou-se o mais que pôde da cidade e cavou um
buraco na terra. Abaixando-se, cochichou lá dentro: “Midas, o rei Midas tem
orelhas de asno!”.
Com taquicardia, apressou-se a
cobrir imediatamente o buraco com a terra e, sentindo o coração bastante
aliviado, retornou silenciosamente à sua casa.
O tempo passou. Na primavera
seguinte, galhos de cana brotaram exatamente do buraco aonde o barbeiro havia
confiado o segredo do rei Midas. Com a passagem do vento, esses galhos
sibilavam – de forma cada vez mais inteligível –, as palavras secretas que
foram confiadas à terra.
Da terra, aos galhos; dos
galhos aos ventos e, dos ventos, espalhado por toda a cidade: o segredo de
Midas estava na boca de todos que, não falando noutra coisa, faziam do patético
monarca motivo de chacota.
Deprimido por tamanho
constrangimento, com medo do escândalo, angustiado diante da opinião dos
outros, Midas compreende que o lúgubre estado de sua alma é um castigo.
Tendo caído no ridículo perante a
opinião pública – forma de culpabilidade –, o imprudente confina-se em seu
palácio.
Por falta de discernimento, bom
senso e bom-gosto, não somente no carnaval – festividade dionisíaca por
excelência – mas o tempo todo, sem o menor pudor, nossa sociedade tornou-se
Midas. E a burrice impera.