“O aristocrata atira para longe muitas imundices com um alçar de ombros que nos outros se gravaria profundamente.” Friedrich Nietzsche
Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) é acusado por muitos – sobretudo os que não o leram ou não o compreenderam – de ser “destruidor da moral”, um “filho de satã”. No entanto, ele tributou a Cristo o reconhecimento de ter sido revolucionário, verdadeiro e único cristão.
Corajoso, Nietzsche teve a audácia de colocar a moral num tribunal, examinando as origens e as deturpações do não egoísmo, da compaixão (altruísmo, renúncia, abnegação), sabidamente possuidores de ‘valores em si’, além de questionar a supremacia do Bem sobre o mal, do Bom sobre o mau, na moral vigente em sua época.
Antes de prosseguirmos, uma ressalva: há o MAL, de malignidade, de perversidade mesmo e o MAU que traduz o imperfeito, de má qualidade, inferior, incapaz, sem talento, sem arte (que é o “mau” do mau pintor, do mau ator, do mau advogado, etc.), enfim, do ruim mesmo.
Nietzsche esmiuçará a origem do MAU contrário ao BOM, que é forjado pelos homens, através da linguagem, justamente onde explicitamos nossos valores morais.
Ele estudou uma antiquíssima religião persa, a Zoroastra, do profeta Zaratustra (de quem fará personagem seu, noutra de suas perturbadoras obras). O Zoroastrismo tem como divindade suprema Ahura-Mazda, um deus que abarca em si o bem e o mal. Arqueológico em seus estudos, Nietzsche sempre privilegiou os primórdios: o pré-socrático Heráclito e o tragediógrafo Sófocles inspiraram-lhe.
Convém esclarecer que Nietzsche não é de fácil compreensão: sua escrita não é linear, ele não é dicotômico (apolíneo x dionisíaco) como parece à primeira vista. Em seus textos, dá voltas e voltas, fala por aforismos: afirma, nega, volta a afirmar e a negar. E, se o adágio popular diz que “a verdade dói”, as suspeitas “verdades” que ele lança são, no mínimo, profundamente perturbadoras.
De uma tradicional família de pastores, de religiosos, o alemão foi também um filólogo (estudioso de línguas clássicas) contundente, apaixonado, que revolucionou os alicerces da metafísica socrático-platônica, da religião judaico-cristã e de cânones da História da Filosofia, tornando-se um dos maiores expoentes da filosofia dita “Contemporânea”.
Em “A genealogia da Moral”, Nietzsche confessa que desde os treze anos, na idade em que “Deus e os brinquedos da infância enchem o coração”, teria indagado: “Que origem teria propriamente os conceitos de bem e mal?”. E afirma que, assim que distinguiu o preconceito teológico do preconceito moral deixou de procurar a origem do mal no “além”, detendo-se aqui mesmo, entre os homens, na terra.
Logo depois, diz ter visto esse problema transformar-se neste outro: “De que modo inventou o homem estas apreciações de valor: o bem e o mal? E que valor tem em si mesmas? (...)”.
Para tanto, ele afirma ser necessário conhecer as condições e o meio ambiente em que nasceram, em que se desenvolveram e se deformaram, ou seja, na linguagem, ferramenta habilmente manejada pelos poderosos: “o pathos [estado emocional] da distinção e da distância, o sentimento geral, fundamental e constante de uma raça superior e dominadora, em oposição a uma raça inferior e baixa, determinou a origem da antítese entre ‘bom’ e ‘mau’.”
Foi a deformação dos valores que o intrigou: “a moral como consequência, como máscara, como hipocrisia, como enfermidade ou como equívoco, e também a moral como causa, remédio, estimulante, freio ou veneno”.
Isso porque, diz ele: “Este direito dos senhores de dar nomes vão tão longe que se pode considerar a própria origem da linguagem, como um ato de autoridade que emana dos que dominam. Disseram: ‘Isso é tal coisa’, vincularam a um objeto ou a um fato, tal ou qual vocábulo, e dessa forma tomaram posse dele. De maneira que primitivamente a palavra ‘bom’ não significava ação ‘altruísta’ como imaginam estes genealogistas da moral. Foi antes ao declinar as apreciações aristocráticas quando a antítese ‘egoísta’ e ‘desinteressada’ (altruísta) se apoderou da consciência humana – é para servir-me de minha linguagem instinto de rebanho que veio à tona.”
Com uma pedagogia própria, pioneira, Nietzsche penetrou nos recônditos da linguagem a fim de descobrir “como a besta humana de Darwin estende gentilmente a mão ao humilde efeminado da moral” e roga que àqueles “que estudam a alma ao microscópio, sejam criaturas generosas, valentes, magnânimas, e dignas, que saibam refrear o coração e sacrificar os seus desejos à verdade, a toda a verdade, ainda à verdade simples, repugnante, anticristã e imoral... porque tais verdades existem”.
Disse ter descoberto o método quando se perguntou: “Qual é, segundo a etimologia, o sentido da palavra ‘bom’ nas diversas línguas?”
“Ao princípio – dizem – as ações altruístas foram louvadas e reputadas boas por aqueles a quem eram úteis (...).” Mais tarde, “foi esquecida a origem deste louvor e chamaram-se boas as ações altruístas por costume adquirido da linguagem, como se fossem boas em si mesmas”.
Dessa primeira derivação, diz “encontramos nisto ‘utilidade’, ‘esquecimento’, ‘costume’, e, por fim, ‘erro’, e tudo para servir de base a uma escala de valor que até hoje parecia privilégio dos homens superiores (...)”. Ele discorda, pois nesse estágio, revelará que privilegia os fracos.
Diz ter descoberto que, em todas as línguas, esta palavra deriva de uma transformação de ideias: “descobri que, em toda a parte, a ideia de ‘distinção’, de ‘nobreza’, no sentido de ordem social, é a ideia do ‘bom’ no sentido de ‘distinto quanto à alma’, e a ideia de ‘nobre’ no sentido de ‘privilegiado quanto à alma’. E este desenvolvimento é sempre paralelo à transformação das noções ‘vulgar’, ‘plebeu’, ‘baixo’, finalmente na noção de ‘mau’.
Uma palavra, duas conotações! A palavra grega kairós, por exemplo: diferente da divindade Chronos, que também traduzimos por tempo, mas o cronológico, kairós é o tempo oportuno. Essa palavra foi cunhada no seio da necessidade do guerreiro saber o momento preciso para desferir o golpe certeiro na jugular do inimigo, garantindo assim sua sobrevivência.
No mesmo espírito afirmativo, primitivamente, a palavra “bom”, aptidão do forte também abarcava a conotação da ação julgada “boa” (útil, eficaz) em contraponto à ação “ruim” (inútil, ineficaz) e não à ação “má”, no sentido de maldade.
Desviando-se do significado primevo (“bom” em contraponto ao “ruim”) a ação ‘ruim’, confundiu-se com a má: “o juízo ‘bom’ não emana daqueles a quem se prodigalizou a ‘bondade’. Foram os mesmos ‘bons’, os homens distintos, os poderosos, os superiores que julgaram ‘boas’ as suas ações (...) estabelecendo esta nomenclatura por oposição a tudo quanto era baixo, mesquinho, vulgar, vilão.”
Através das palavras e raízes que significam ‘bom’, transparece o matiz principal pelo qual os ‘nobres’ se sentiam homens de uma classe superior e se glorificavam: “um traço típico de caráter determina o epíteto (...).”
Com o tempo, na maior parte dos casos, diz ele, os poderosos (os donos, os chefes) tomaram o nome da superioridade do seu poder, ou dos sinais exteriores desta superioridade (os ricos, os possuidores) como rótulo, deformando o teor original, pois o traço típico, o caráter distintivo da nobreza é o de ser verdadeiro: “Chamam-se, por exemplo, ‘os verídicos’; assim se designa a nobreza grega por boca do poeta megárico Theogonis.”
Nietzsche esclarece que “A palavra esdlos significa pela origem ‘alguém que é’, alguém que é real, que é verdadeiro; depois, por uma modificação subjetiva, o verdadeiro vem a ser o verídico: a esta fase de transformação da ideia vemos que a palavra que a expressa vem a ser a contrasenha da nobreza, e toma em absoluto o sentido de ‘nobre’ por oposição ao homem vulgar, ao homem que mente (...).” Quando a nobreza guerreira declina, aquela palavra vem a significar a nobreza da alma.
Na palavra kakós [mau daimon], como em deilos (que designa o plebeu em oposição ao agathos - Bom) está sublinhada a covardia, diz Nietzsche. Covarde é o que mente, é inábil e inútil: “A sua alma é turva, o seu espírito procura os recantos e os mistérios e portas ocultas; todo o culto o encanta; aí acha o seu mundo, a sua segurança, o seu descanso; sabe guardar o silêncio, não esquecer, esperar, fazer pequeno provisoriamente, humilhar-se.”
Tendo a regra transformado o conceito político num conceito psicológico, houve uma diferença entre ‘bom’ e ‘mau’ num sentido não de aptidão, mas de crueldade.
Dizer a verdade é tarefa assumida por afirmativos, fortes, corajosos, sadios, enfim, por nobres: “nós, os aristocratas, nós os bons, os formosos, os felizes.” Tinham o sentimento de serem plena e genuinamente felizes “e não tinham a necessidade de construir artificialmente a sua felicidade, comparando-se com os seus inimigos e enganando-se a si mesmo como faziam os rancorosos; na sua qualidade de homens completos, vigorosos e necessariamente ativos, não acertavam em separar [não separavam] a felicidade da ação – a ação, o lutar, o trabalho é incluído neles necessariamente na felicidade (...).”
Já a mentira é sempre acalentada pelos desprezíveis, fracos, aduladores e doentes que não têm do quê se orgulhar, embora a mentira acabe por transformar fraqueza em mérito: “A covardia, que está sempre à porta do fraco, toma aqui um nome muito sonoro e chama-se: ‘paciência’, chama-se talvez de virtude (...).”
E quanto à felicidade imaginada pelos “impotentes, os obstruídos, os de sentimentos hostis e venenosos (...)”, afirma que difere da felicidade dos nobres, pois “aparece sob a forma de estupefação, de sonho, de repouso, de paz, de sábado, de descanso do espírito, de estender dos ossos.”
Esses invejosos e ressentidos, devido à debilidade senil da vontade sacarão de uma ardilosidade peculiar para realizar uma transvaloração dos valores e impor a “sua” moral: a do pobre coitadinho: “Esta classe de homem na realidade necessita crer num ‘sujeito neutro’ dotado de livre-arbítrio; é um instinto de conservação pessoal, de afirmação de si mesmo porque toda mentira tende a justificar-se”.
Numa inversão de valores, caberá aos ‘bons’ se culparem e se arrependerem tornando-se seguidores de rebanho. Dizer que Nietzsche é polêmico, é redundância. Suas ideias são amedrontadoras: “a finalidade de toda a cultura é domesticar a besta humana.” Prossigamos, há muito a desvelar.
Para o meu pai, que sempre soube ser nobre.